2004-11-19

CULTURA E SELVAGERIA


Sobre a matéria (Entrevista da 2ª.,F.S.P. Ciência A 14, de 15 de novembro de 2004) publicada sob o título “CEU deveria virar clube para pobres, sugere antropóloga”, no qual é entrevistada a antropóloga Eunice Durham, entendo necessárias várias correções que tentarei sucintamente relacionar. (leia)


Os CEUs já podem ser considerados clubes para pobres, como pretende a antropóloga, por suas atividades serem totalmente franqueadas ao público. Há teatro, cinema, quadras, pistas de skate, oficinas de música, palestras, grupos de teatro, projetos educacionais de formação, aulas de alfabetização para adultos e muito mais. Isso porque o espaço físico é disponibilizado para que a comunidade se organize e proponha suas atividades, além da programação feita pelo D.A.C.R. (Departamento de Arte e Cultura Regionalizada), que gere os CEUs e as Casas de Cultura. Parte da programação musical é feita por Zuza Homem de Melo, por exemplo.

A matéria da Folha, portanto, parte de uma premissa equivocada, para não supor que seja tendenciosa: a de que as piscinas e teatros são destinados a uso exclusivo dos alunos regularmente matriculados. É um erro crasso. Em cada CEU há 3 prédios: o educacional, o cultural e a creche. Não existe, em instância alguma, a obrigatoriedade de ser aluno do núcleo educacional para poder freqüentar o núcleo cultural ou o pólo computacional, por exemplo. Não existe crachá ou carteirinhas. Não há grades, porque quem mora nos locais onde foram construídos os CEUs já tem em sua vida cotidiana suficientes cerceamentos geográficos e sociais. Uma pequena pesquisa na Internet, por parte da entrevistada ou do entrevistador, poderia evitar a situação desagradável de uma antropóloga vir a público, por esta Folha, sugerir algo que já existe. Ou pior, supor a decadência e decretar a falibilidade de algo que sequer entenda.

Durante este ano, a Unidade na qual exerci coordenação musical foi visitada por vários artistas e educadores ligados a universidades federais e estaduais, justamente pela importância histórica e social dessas escolas. Além dos projetos culturais e educacionais em curso, o ambiente do CEU comporta um relacionamento de respeito e solidariedade com as lideranças da região. Quem mora na periferia, e isso parece escapar da análise da antropóloga, estuda, se organiza, reivindica e pensa. Os "imigrantes iletrados", como a antropóloga os classifica, provavelmente se referindo aos migrantes nordestinos, são muitas vezes artistas populares detentores de vasta cultura tradicional e oral que participam e contribuem nas atividades educativas desenvolvidas os CEUs. Como músico sou treinado para ouvir e sentir antes de classificar e dividir. Talvez por isso cause-me arrepios ouvir um jargão antropológico do século XIX destinar pessoas dignas e talentosas a uma vala comum de “pobres, iletrados e resíduos não assimilados, mais facilmente alcançáveis por uma eficiente militância de esquerda” (sic.).

Muito mais do que uma escola ou um clube (o conceito de clube lembra-me a elite britânica do século XIX e início do XX discutindo a colonização dos “selvagens iletrados” da Índia) os CEUs são um centro de convivência e de irradiação de cultura estrategicamente localizados. São uma espécie de correção no mapa paulistano dos investimentos na cultura e educação, herança de seguidas administrações que associaram a pobreza material à ignorância e falta de cultura. Para essa “professora emérita” que parece não ter lido Paulo Freire ou Marilena Chauí lembro também que nosso objetivo não é tirar as crianças da rua e sim tornar as ruas, e a cidade, um espaço mais agradável de se viver. Faço parte de uma comissão que irá auxiliar a transição do projeto dos CEUs para outros educadores do PSDB e gostaria de convidar a dona Eunice Durham para conhecer alguma de nossas unidades e assegurar-lhe que será muito bem-vinda e sairá ilesa e surpresa, porque “pobreza” não é contagiosa